A IMAGEM PÁLIDA DO OURO FINO
- Fernando Liguori
- 14 de mar.
- 31 min de leitura

Por Fernando Liguori | Frater AHA-ON 777
@estrelaeserpente | @argentiumaster | @hermakoiergon
Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei.
Desde minha iniciação como Neófito 1°=10 na A∴A∴ em 1999 e minha iniciação na O.T.O., 25 anos atrás, em um percalço de altos e baixos, perdas e ganhos, dissabores e regozijos, afastamento e retorno em períodos de silêncio e de manifestação, eu tenho buscado viver a magia sexual thelêmica no meu dia a dia com a minha mulher escarlate, Soror Vox Babaloniis, 156. Hoje, mais do que nunca, os princípios filosóficos delineados e promulgados em O Livro da Lei fazem tanto sentido. Minha educação espiritual começou com Thelema em 1996, quando me tornei um Probacionista 0°=0 da A∴A∴; quase trinta anos depois as sementes geminadas naquela época ainda estão brotando, após uma longa travessia no Rio da Vida.
7. Além disto, eu tive a visão de um rio. Nele havia um botezinho; e neste, sob velas de púrpura, estava uma mulher dourada, uma imagem de Asi lavrada do ouro mais fino. Também, o rio era de sangue, e o bote de aço brilhante. Então eu a amei; e, desatando meu cinturão, atirei-me à correnteza.
8. Eu recolhi-me ao botezinho, e durante muitos dias e noites eu a amei, queimando lindo incenso diante dela.
9. Sim! Eu lhe dei da flor da minha juventude.
10. Mas ela não se moveu; apenas, pelos meus beijos eu a conspurquei tanto que ela enegreceu perante mim.
11. Entretanto eu a adorei, e dei-lhe da flor da minha juventude.
12. Também aconteceu que através disto ela adoeceu, e corrompeu-se diante de mim. Quase me atirei à correnteza.
13. Então, no fim marcado, seu corpo era mais branco que o leite das estrelas, e sua boca rubra e quente como o ocaso, e sua vida de um branco em brasa como o calor do sol do meio-dia.
14. Então ela se ergueu do abismo de Idades de Sono, e eu seu corpo me abraçou. Eu me derreti por completo em sua beleza, e alegrei-me.
15. Também o rio tornou-se o rio de Amrit, e o botezinho era a carruagem da carne, e suas velas o sangue do coração que me carrega, que me carrega.
16. Ó mulher serpente das estrelas! Eu, mesmo eu, Te fiz de uma pálida imagem de ouro fino.
17. Também o Santo veio sobre mim, e eu vi um cisne branco flutuando no azul.[1]
Escolhi essa passagem de Liber LXV – um dos Livros Sagrados de Thelema –, a parábola da imagem pálida do ouro fino, como uma alegoria deste momento iniciático de minha carreira mágica, e ao mesmo tempo, em homenagem as condições atuais em que a filosofia de Thelema, vamos dizer assim, foi assaltada por uma miríade de escravos pedantes que perecem em buracos de porque, soldados profissionais[2] que corrompem a estrutura da A∴A∴ e da O.T.O. com todo tipo de besteira woke.[3] Se o método é chamado de Iluminismo Científico, porque diabos teorias não-científicas – ou anticientíficas – como teoria de gênero tem sido imposta como Verdade a nós thelemitas por estes indivíduos? A parábola da imagem pálida do ouro fino pode explicar isso.
Quando fui admitido na A∴A∴ por Frater S.S. como um Probacionista 0°=0, uma de minhas obrigações foi memorizar um capítulo inteiro, a minha escolha, de Liber LXV. O capítulo que escolhi foi o segundo, porque na época era o que mais me chamava atenção piedosamente, i.e. religiosamente. Uma vez que desenvolver a devoção era um problema para mim, minha intuição me dizia que aquele deveria ser o capítulo a ser memorizado, porque me inspirava profundamente. Existe uma mística de transcendência na leitura, estudo e memorização dos Livros Sagrados de Thelema e todo thelemita é convidado a nortear sua carreira mágica por eles.
Parábolas são veículos de instrução espiritual, espelhos nos quais a alma do buscador pode contemplar sua própria verdade. Em Thelema, elas não apenas ensinam, mas despertam. Elas quebram a rigidez da narrativa dogmática para se tornarem portais vivos de sabedoria, conduzindo o aspirante através do simbolismo e da revelação direta. No Liber LXV, essas parábolas não são meras histórias, mas chamados à Iniciação, mapas do Caminho, retratos vívidos da relação entre o Iniciado e o Deus Oculto. Algumas dessas parábolas são:
A Parábola do Novo Nascimento (Cap. I, Vs. 47-48) desafia o Aspirante a abandonar a ilusão da vida mundana, que não passa de morte, para que possa verdadeiramente nascer no espírito. Ela exige coragem: aquele que trilha o Caminho deve se despir da antiga pele e atravessar o umbral do desconhecido, aceitando o que o mundo chama de morte para alcançar a única Vida que realmente importa.
A Parábola da Imagem Pálida do Ouro Fino (Cap. II, Vs. 7-17) ensina um segredo profundo: a natureza externa, por mais bela que pareça, é apenas um reflexo pálido da Essência Divina. Muitos se prendem à adoração da forma, mas aquele que deseja a Verdade deve superar a fascinação pela aparência e beber do cálice da essência. O iniciado deve aprender a não confundir a casca com o fruto, nem a sombra com a Luz.
A Parábola do Beija-flor (Cap. V, Vs. 52-56) instrui sobre a perseverança e o compromisso com o Caminho. O néctar da Iluminação não é concedido ao curioso que dança de flor em flor, mas ao verdadeiro Aspirante, que finca suas raízes na senda da Realização e a percorre do início ao fim. Sem a verdadeira dedicação, a revelação permanece um véu, um eco distante do que poderia ser vivido diretamente.
Embora essas parábolas estejam profundamente ligadas ao sistema iniciático da A∴A∴ e falem diretamente aos thelemitas, sua mensagem ressoa com todos os que aspiram ao Conhecimento e à Realização.
Muitos poderiam comparar essas parábolas com as de Jesus no Novo Testamento. No entanto, enquanto os ensinamentos do Cristo eram dirigidos ao povo comum de sua era, as Parábolas do Novo Aeon são universais e atemporais. Elas não pertencem a uma religião, uma doutrina ou um povo. Elas pertencem àqueles que ousam caminhar na luz da Verdadeira Vontade.
O próprio Novo Testamento diz que suas parábolas foram dirigidas aos de fora, enquanto os discípulos recebiam os mistérios abertamente (Marcos 4:11). Mas em Thelema não há dentro ou fora. A Chama do Conhecimento está acessível a todos que sinceramente aspiram à União com seu Deus Oculto, pois o Reino de Deus está dentro de vós.
Como Escritura da A∴A∴, Liber LXV pertence à Classe A – é intocável, imutável, além da crítica racional. Ele não é um livro a ser dissecado intelectualmente, mas um espelho da alma, cujos segredos se desvelam apenas àqueles que olham com olhos iluminados.
Para compreendê-lo, é necessário entender as figuras que encenam seu drama sagrado: Adonai, V.V.V.V.V., o Magister, o Adepto e o Servo ou Escriba. Adonai, o Espírito Sagrado, fala ao Magister. O Magister instrui o Adepto. O Adepto, por sua vez, assume o papel de Servo e Escriba, testemunhando as maravilhas da Revelação. Assim se traça a cadeia iniciática, a sucessão daqueles que, tendo alcançado a Luz, estendem a mão àqueles que vêm depois: a luz em extensão.
As Parábolas de Thelema contidas em Liber LXV são portais vivos, onde os segredos do Novo Aeon se revelam. Na parábola da imagem pálida do ouro fino o rio representa a correnteza ou o fluxo total da consciência, i.e. consciente e inconsciente, do Adepto. Seu corpo, por sua vez, é o botezinho, a carruagem da carne, representando a corporificação da alma na matéria. O rio é apresentado na parábola como sendo de sangue, representando, portanto, o Rio da Vida, porque sangue é vida. No Velho Aeon, o sangue – do ritual sacrificial – era oferecido a Yawheh para redimir o homem pecador, porque a fórmula mágica deste Aeon era àquela do deus moribundo imolado, significando, dessa maneira, que qualquer redenção deveria passar pela dor da morte e do sofrimento. No Novo Aeon sangue continua sendo a Vida (II° O.T.O.), e somos livres para sacrificar a essência da Vida, o nosso sangue, em detrimento da Verdadeira Vontade. Todos estamos, cada um de nós está flutuando em seu próprio botezinho na correnteza do Rio da Vida.
As velas do botezinho são apresentadas na cor púrpura, a cor imperial dos magistrados romanos e a cor eclesiástica da autoridade episcopal da Igreja Católica. É uma cor, portanto, associada a realeza, nobreza e pureza espiritual. Crowley diz que púrpura representa a existência celestial ou estelar manifestada através do princípio do sangue ou da vida animal.[4] Em seus comentários sobre essa passagem, Crowley descreve as velas de púrpura como as paixões que conduzem o curso do botezinho;[5] e no Liber AL vel Legis lemos: Pálido ou púrpura, velado ou voluptuoso, Eu que sou todo o prazer e púrpura, e embriaguez do senso mais íntimo te desejo. Põe as asas, e acorda o esplendor enroscado dentro de ti: vem a me![6]
Nessa passagem de O Livro da Lei, pálido é associado a velado e púrpura é associada a voluptuoso. Em seguida Nuit se descreve como Eu que sou todo o prazer e púrpura, de onde podemos inferir o âmago do que Crowley definiu como existência celestial ou estelar manifestada através do princípio do sangue ou da vida animal.[7]
Por outro lado, as velas são uma representação do elemento Ar que move o botezinho, sem o qual não existe Vida. Nessa parábola, portanto, as velas representam as paixões que orientam o curso do botezinho no rio da vida, i.e. o impulso que direciona a Verdadeira Vontade a deificação da alma (ou realização da Grande Obra). As velas são os meios pelos quais nós capturamos a inspiração divina para dar curso a nossa Vontade.
E o botezinho é de aço brilhante, um metal de fabricação humana. As velas, de igual modo, são púrpura, uma cor também de fabricação humana. Isso é mais uma indicação de que o botezinho representa o homem e a humanidade em sua jornada iniciática pelo Rio da Vida, a encarnação na matéria.
Em sua visão, o Escriba, i.e. Aleister Crowley, tecnicamente Frater V.V.V.V.V.,[8] vê uma bela imagem dourada do ouro mais fino sob as velas do botezinho. Ela é Asi, quer dizer, a deusa Ísis, que representa a vida divina na Natureza. Mas no contexto desta parábola trata-se apenas de uma imagem, e não a coisa em si. No entanto, o Escriba se apaixona por ela, ou seja, se encanta pelo ideal que a imagem representa. Impelido por essa paixão, o Escriba desata seu cinturão, em outras palavras, se livra dos grilhões de sua razão, que o aprisionam, e então se atira na correnteza do Rio da Vida. Este é o movimento do adepto tentando se libertar das amarras do Ego para mergulhar profundamente no fluxo de sua consciência pura.
O cinturão que prende o Escriba não é apenas um adorno físico, mas um símbolo do intelecto rígido, da contenção do espírito e das barreiras da razão. Ele o afrouxa, mas não o remove completamente – pois a razão nunca deve ser abandonada, apenas flexibilizada para permitir a experiência mística extática.
Ele declara: eu a amei. Mas o amor não nasce do ruach, a fria faculdade do raciocínio. Ele emana do nephesh, do coração profundo, do desejo que transcende a lógica e impulsiona o ser rumo ao divino. O amor não é um cálculo; é um chamado irresistível que impele à entrega, ao abandono do controle e ao salto no desconhecido.[9]
E assim, movido por essa paixão súbita, ele se lança no rio de sangue. Não é a razão que o faz soltar suas amarras, mas o arrebatamento do espírito, aquele impulso que leva o Iniciado a abandonar os limites do mundo profano para buscar a essência oculta das coisas. Como um peregrino que rasga os véus da ilusão, ele mergulha no fluxo da consciência cósmica, onde o destino da alma é forjado pelo fogo da experiência direta.
Em seu salto, o Escriba apenas afrouxa o cinto. Ele não o lança fora, pois sua jornada não exige uma renúncia total à razão, mas sim a harmonização entre intelecto e emoção. Como em tantas práticas espirituais, a verdadeira iniciação reside no equilíbrio sutil entre disciplina e entrega, entre conhecimento e êxtase. O intelecto, quando demasiado rígido, é uma corrente que aprisiona a alma; quando disciplinado e flexível, torna-se a chave que abre as portas da sabedoria. No Liber VII encontramos outro mistério dessa libertação progressiva:
Estes afrouxam as faixas do cadáver; estes desamarram os pés de Osíris, para que o Deus flamejante possa se enfurecer através do firmamento com sua lança fantástica.[10]
Osíris, o senhor da morte e ressurreição, é a imagem do Aspirante que ainda dorme sob os véus do mundo profano. Amarrado dos pés ao pescoço como uma múmia, ele é a alma que aguarda sua libertação, aprisionada pelas correntes do hábito, da ignorância e do medo. Mas o despertar da Vontade Iniciática afrouxa essas ataduras, permitindo que ele se levante e caminhe rumo à sua ascensão.
No sistema da A∴A∴, o simbolismo de Osíris é utilizado para representar o Aspirante iniciante, preso na letargia e inércia do mundo profano. Todo Candidato à Iniciação é identificado inicialmente com Osíris (Asar), lutando contra o sono da morte, alheio às Aspirações Superiores.
Assim é o caminho do Iniciado: as faixas não são rompidas de uma só vez, mas vão sendo afrouxadas, pouco a pouco, conforme a Vontade desperta e se fortalece. O verdadeiro Adepto não precisa destruir a mente racional, mas sim refiná-la, convertendo-a de carcereira a aliada da alma.
As amarras que restringem a Vontade do Aspirante devem ser afrouxadas para que ele manifeste o Quinto Poder da Esfinge: IRE, i.e. Ir, Caminhar, e liberte a Criança dentro de si, o Deus flamejante Hórus. Magicamente, nas práticas privadas do Iniciado, os bolos de luz podem servir como um auxílio nesse processo, porque carregam o ochēma-pneuma com força mágica. Neste exemplo do Liber VII, as restrições não são removidas, mas afrouxadas o suficiente para libertar os pés e permitir mobilidade.
Da mesma maneira, o Escriba, movido pelo amor à Deusa, afrouxa sua armadura intelectual e se atira à correnteza, em busca de algo além da compreensão. Mas é aqui que ele comete um erro sutil, um engano que ameaça desviá-lo de sua jornada suprema: ele se apaixona pela Imagem Ideal – ou fatal – da Natureza.
Não pelo mundo profano – que tantas vezes enreda o Aspirante nas ilusões materiais –, mas por um reflexo ainda mais sedutor: o ideal abstrato da beleza, a perfeição ilusória da forma, a sombra de um mistério maior, i.e. uma fatalidade em seu Caminho. E, fascinado por essa miragem, ele se atira à corrente, acreditando que pode alcançá-la.
Este é o perigo que ronda os Iniciados: a tentação de confundir a imagem com a essência, o símbolo com a realidade, a luz refletida com o Sol verdadeiro.[11] A libertação não está em amar a forma, mas em atravessá-la para tocar a Verdade oculta por trás do véu. O rio no qual o Escriba mergulha é mais que um fluxo de consciência – é a travessia necessária entre a ilusão e a revelação, entre a paixão e a deificação.
Para onde ele será levado? Apenas os que ousam mergulhar na corrente podem descobrir.

No grande espelho do caminho iniciático, surge o mistério de Tzelim, a Imagem. Inspirado no desenho de Éliphas Lévi[12] e aprofundado por S.L. Mathers,[13] esse conceito revela um enigma essencial àqueles que buscam a Luz. Há duas Imagens refletidas: uma luminosa, outra sombria, ambas dançando num jogo de espelhos. Podemos ver o Augoeides, o Sagrado Anjo Guardião, ou seu oposto, a Persona Sombria. Mas ambas são sombras do Real, ilusões que podem aprisionar a alma do buscador incauto.[14]
No Caminho da Verdadeira Iniciação, aprendemos a ignorar as imagens, pois como diz o Liber XV: Não vos contenteis com a imagem.[15] A imagem é apenas um reflexo do Mistério e nunca o próprio Mistério. Quantos se perdem adorando a casca morta da Verdade? Quantos se enamoram pelas formas externas dos Deuses, pela figura de Nuit, Ra-Hoor-Khuit, da Besta, ou até mesmo de Aleister Crowley? A adoração do reflexo pode levar à cegueira.[16]
O Escriba, aspirante da parábola, sucumbe a esse encanto. Ele se lança no Rio da Vida, nadando com fervor, buscando alcançar a Imagem Dourada da Deusa. Quando finalmente se ergue sobre a embarcação sagrada, inicia seu Ritual de Adoração:
8. Eu recolhi-me ao botezinho, e durante muitos dias e noites eu a amei, queimando lindo incenso diante dela.
9. Sim! Eu lhe dei da flor da minha juventude.
Mas o que é essa flor da juventude? Seria apenas o vigor físico, a energia dos primeiros anos da vida? Não. O Mistério da Flor da Juventude não pertence ao tempo profano, mas ao momento do Novo Nascimento Espiritual. Quando o iniciado desperta para a Grande Obra, esse é o florescer de sua alma – não importa se tem 20 ou 70 anos. Nunca é tarde para navegar no Rio da Vida. O verdadeiro florescer não está limitado à juventude física. Somos afortunados quando despertamos cedo, mas a alma pode florescer a qualquer momento.
Entretanto, nem todos compreendem essa verdade. Nos versos seguintes do Liber LXV, o jovem Escriba segue adorando sua Imagem Dourada. Mas algo acontece:
10. Mas ela não se moveu; apenas, pelos meus beijos eu a conspurquei tanto que ela enegreceu perante mim.
11. Entretanto eu a adorei, e dei-lhe da flor da minha juventude.
12. Também aconteceu que através disto ela adoeceu, e corrompeu-se diante de mim. Quase me atirei à correnteza.
Aqui reside a revelação: ele confundiu a Imagem com a Essência. Ele dedicou toda sua energia ao que acreditava ser a Verdade, sem perceber que adorava um ídolo sem vida. No tempo devido, a gloriosa imagem dourada se obscureceu, tornando-se um espelho vazio. E ele havia consumido a si mesmo adorando um reflexo.
Esse é o destino daqueles que buscam a iluminação apenas na letra morta, nos dogmas congelados, nas formas rígidas do passado. Muitos amam o invólucro da tradição, mas nunca bebem do Vinho do Mistério. O maior perigo não é errar, mas persistir cegamente no erro, sustentado pela devoção à ilusão. A Imagem pode ser dourada, bela e radiante – mas se for apenas um espectro do Mistério, ela inevitavelmente se tornará negra e sem vida. A Verdade não pode ser adorada como um ídolo imóvel. Ela deve ser vivida, respirada, experimentada na carne e na alma. Então que aquele que busca a Luz, não se contente com a imagem.
O ouro, em sua nobreza, jamais reage com o oxigênio; não se corrompe, não se degrada, não enferruja. Sua pureza é inviolável. Ainda assim, a ação do suor e da saliva humana pode criar uma película de impurezas sobre sua superfície, um véu de manchas escuras que, com o tempo, se acumula e oculta seu brilho original. Contudo, essa camada é apenas transitória, um engano dos sentidos, pois a essência do ouro permanece intocada, inalterada, eterna.
Mas ao contemplar essa verdade com olhos limitados, o aspirante não enxerga além da superfície corrompida. Ele vê apenas a imagem maculada, aquela que outrora resplandecia com uma beleza celestial, mas que agora parece obscurecida pelo peso dos séculos e dos desejos humanos. Aquilo que era um reflexo do divino se tornou um ídolo manchado pela ilusão do mundo.
Agora, abra os olhos, mas mantenha essa visão gravada no templo da mente: mesmo diante da degradação aparente da imagem, o aspirante persiste em sua devoção. Ele continua a oferecer-lhe a flor de sua juventude, sua paixão, sua força vital. Mas, à medida que o tempo avança, a beleza dourada parece se tornar cada vez mais um espectro sombrio, e o próprio coração do aspirante se vê envenenado pela dúvida. O que antes era um altar sagrado agora se torna um cárcere de desilusão.
A visão que nutria em seu espírito se deteriora, e ele se encontra à beira do desespero. Seu impulso é abandonar sua busca e se lançar de volta ao rio, dissolvendo-se na corrente do esquecimento. Mas ele não o faz.
13. Então, no fim marcado, seu corpo era mais branco que o leite das estrelas, e sua boca rubra e quente como o ocaso, e sua vida de um branco em brasa como o calor do sol do meio-dia.
14. Então ela se ergueu do abismo de Idades de Sono, e eu seu corpo me abraçou. Eu me derreti por completo em sua beleza, e alegrei-me.
No momento marcado pelo destino, Ela mudou. Mas será que mudou? Não, Ela jamais mudou. Ela sempre foi feita de ouro – eterna, incorruptível, um reflexo puro da Verdade imutável. Foi o olhar do aspirante que se transformou. Ele viu não com os olhos da carne, mas com os olhos do espírito. A impureza nunca esteve Nela, mas sim nele. As trevas eram apenas um reflexo de sua própria ignorância. Agora, purificado pelo fogo da provação, ele contempla, pela primeira vez, a verdadeira face da Deusa.
Neste perspectiva iniciática, nenhuma imagem pode conter Deus; o divino deve ser adorado no templo vivo da alma. O aspirante, mesmo tomado pelo desencanto, seguiu adiante, guiado pela chama da Vontade. Ele começou com expectativas, apegado ao desejo de resultado, e por isso adorou o reflexo em vez da realidade. No entanto, ao manter-se fiel ao seu caminho, sua visão se purificou e sua percepção se expandiu. A oração mecânica dos lábios tornou-se a verdadeira súplica do coração. E assim, aquilo que antes parecia distante tornou-se íntimo, e a estátua que um dia foi apenas um ídolo inerte revelou-se como um portal para o mistério oculto.
A jornada do aspirante não é isenta de provações. Todos aqueles que trilham a senda da Grande Obra passarão pela noite escura da alma,[17] o terrível estágio do nigredo da alquimia, onde até mesmo o que amamos se torna um fardo e a luz da inspiração parece se apagar. As práticas, antes repletas de entusiasmo, tornam-se áridas; o fervor transforma-se em monotonia. Esse é o momento crucial, onde muitos falham e abandonam o caminho. Mas a única chave para superar essa escuridão é persistir sem apego, sem desejos, sem expectativas. O navegante não pode abandonar seu barco no meio do rio; deve continuar, mesmo sem ver a outra margem. Pois a escuridão não é o fim, mas a transição para um novo amanhecer. E, quando chega o tempo determinado – não por algum destino arbitrário, mas pelo próprio amadurecimento da alma – a visão se abre e a deusa revela sua verdadeira face. Seu corpo brilha com a luz do sol mais puro, seus lábios irradiam o calor da aurora, e sua essência se torna uma chama viva no coração do iniciado.
Aquele que persiste até o fim será transfigurado. Pois Tiphereth, o centro da Árvore da Vida, a morada da Beleza e do Conhecimento do Sagrado Anjo Guardião, não é um lugar que se atinge – mas sim uma luz que se acende dentro do próprio coração.
15. Também o rio tornou-se o rio de Amrit, e o botezinho era a carruagem da carne, e suas velas o sangue do coração que me carrega, que me carrega.
16. Ó mulher serpente das estrelas! Eu, mesmo eu, Te fiz de uma pálida imagem de ouro fino.
E então, nosso humilde aspirante compreendeu. O rio sobre o qual navegava não era um curso de águas comuns, mas o Rio de Amṛta,[18] o Rio da Imortalidade. A pequena embarcação não era meramente madeira e vela, mas sim o reflexo de seu próprio corpo, o carro de carne, a carruagem que o conduzia entre os mundos.
No Liber LXV, a mesma revelação é insinuada nos primeiros versos do segundo capítulo:
1. Eu entrei na montanha lápis-lazúli, mesmo como um falcão verde entre os pilares de turquesa que está sentado sobre o trono do Oriente.
Nos antigos escritos egípcios, no Livro do que está no Duat,[20] a embarcação que transportava o deus-sol era chamada ꞽwf, que significa carne. Eis o grande mistério: a jornada celestial não se faz no etéreo, mas sim na própria substância do corpo, que é tanto um veículo quanto um templo. Assim, o barco de carne é a chave que nos conduz pelo oceano da existência até as regiões ocultas do espírito.
E as velas púrpuras, infladas pelo sopro do espírito divino? Elas são o próprio sangue do coração do aspirante, a essência vibrante da vida pulsando com cada batida. Pois a inspiração divina que ele buscava desesperadamente nunca esteve fora dele, mas sim dentro, sempre presente, aguardando ser reconhecida: Não existe deus senão o homem.[21]
E ao alcançar a plenitude de sua jornada, o aspirante, agora iluminado, ergue sua voz em uma adoração sublime. Não mais à falsa imagem que um dia tomou como verdadeira, mas à Essência Viva da Deusa, à Mulher-Serpente das Estrelas. Em um misto de êxtase e incredulidade, ele sussurra: Eu, mesmo eu, Te fiz de uma pálida imagem de ouro fino.
Mas quem é essa Mulher-Serpente das Estrelas?
É Nuit, a vastidão infinita, o ventre cósmico que gera todas as coisas e as envolve com seu mistério sagrado. Em O Livro da Lei ela proclama: Eu sou o Espaço Infinito, e as Infinitas Estrelas.[22] Observe com atenção o verso em inglês com as letras maiúsculas em destaque: I am Infinite Space, and the Infinite Stars, quer dizer, I.S.I.S.
Nos hieróglifos antigos, seu nome era acompanhado pelo símbolo da Cobra, pois ela é a Serpente Celestial, aquela que se enrosca nas estrelas e sussurra os mistérios aos que ousam escutá-la. Aqui repousa o segredo: todo buscador começa sua jornada iludido, adorando meras sombras da Verdade. Mas essas imagens imperfeitas são as pedras do caminho. Pois é a partir delas que construímos nossa ponte rumo ao Real. No 17° Aethyr de A Visão & a Voz lemos: A vossa falsidade é apenas um pouco mais falsa do que a vossa verdade. Ainda assim, por meio da vossa verdade, chegareis à Verdade.[23]
Sim, devemos erguer uma visão e segui-la com determinação. Mas devemos lembrar que aquilo que tomamos por Verdade ainda não é a Verdade Suprema. Eis a chave do mistério: no caminho da Grande Obra, o que nos parece verdadeiro hoje será apenas uma sombra amanhã. Nossa verdade é apenas um vislumbre da Verdade Maior. Se perseverarmos, atravessando os desertos da dúvida, os mares da ilusão e as noites escuras da alma, então, ao fim da jornada, chegaremos ao que buscamos – à Verdade que se escreve com V maiúsculo. Portanto, não temais a longa estrada. Sejam firmes, meus irmãos e irmãs. Pois a Luz aguarda aqueles que não desviam o olhar do horizonte.
A jornada da iniciação é um mistério velado, um labirinto cujos caminhos se desenrolam à medida que o Adepto caminha com coragem, atravessando as sombras da ilusão e os véus que ocultam a Verdade. A parábola da imagem pálida do ouro fino nos ensina que a Luz não se revela àqueles que se apegam à casca, mas àqueles que ousam atravessar a escuridão do nigredo e encontrar o brilho imaculado do espírito. Muitos se perdem adorando reflexos, encantados pelas formas que brilham momentaneamente, mas que se obscurecem sob a corrupção da mente cativa. Somente aqueles que perseveram, que não abandonam o barco no meio do rio, terão a visão transformada e verão que a Beleza sempre esteve ali, esperando ser reconhecida não como um ídolo morto, mas como uma chama viva dentro do próprio coração. A Verdadeira Vontade não é uma imposição externa, mas uma centelha oculta que deve ser acesa, alimentada e mantida com o fogo da própria experiência.
No Rio de Amṛta, o bote da carne se move ao sabor das velas púrpuras do sangue e das paixões, impulsionado pelos ventos do espírito. Nuit sussurra aos ousados que olham para além das formas e despertam para o real significado da Vida e da Iniciação. Aquele que se perde nos ídolos dourados jamais verá a essência, mas aquele que permite que a ilusão se dissolva encontrará a eternidade dentro de si. Os ensinamentos da A∴A∴ promovem o conhecimento desse mistério: uma via de transcendência, onde a magia é a própria arte da Vida. Compreender a iniciação thelêmica não é meramente estudar técnicas ou experimentar ritos, mas transformar-se no mistério que se busca, encarnar a Verdadeira Vontade, tornar-se uma estrela em órbita própria, irradiando luz sem se deixar aprisionar por dogmas, ortodoxias ou moralismos. A iniciação verdadeira não é um aprendizado externo, mas a descoberta íntima da própria Divindade.
No final, como no início, não há guia senão a própria Vontade, não há autoridade senão o próprio Conhecimento realizado. O iniciado que atravessa a noite escura da alma e permanece firme encontrará a senda dourada que leva à deificação. Pois não existe deus senão o homem. E se a trilha for percorrida com fervor, com coragem e sem restrições, a visão se abrirá e o Graal da Grande Obra será preenchido com o elixir imortal. Que cada estrela siga seu curso e que a Lança Sagrada se erga, pois a senda da Estrela e da Serpente conduz ao mistério último, onde nada é proibido àquele que faz a sua Vontade.
Atirando-me à correnteza dessa existência celestial estrelada manifestada através do princípio do sangue da vida[24] é que reestruturo a Ordo Estrela & Serpente à serviço da A∴A∴, dentro do trabalho do obeah e wanga,[25] e cuja única e fundamental premissa é: tu não tens direito a não ser fazer a tua vontade.[26]
Amor é a lei, amor sob vontade.

Este texto é um excerto de A Lança & o Graal, em breve disponível.
NOTAS:
[1] Aleister Crowley. Liber LXV vel Cordis Cincti Serpente, Cap. II, 7-17. Os Livros Sagrados de Thelema. Madras. 1998, pp. 88.
[2] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, II:49; II:27-30 e 33; III:57.
[3] Thelema, como sistema filosófico e espiritual, fundamenta-se na soberania individual, na Verdadeira Vontade e na superação das limitações autoimpostas, rejeitando qualquer ideologia que imponha dogmas coletivistas ou restrições externas à expressão da Vontade. A cultura woke, a teoria queer e a teoria de gênero baseiam-se em uma visão construtivista e relativista, onde identidades e realidades são maleáveis conforme convenções sociais e sentimentos subjetivos, enquanto Thelema reconhece uma hierarquia natural, a realidade objetiva do indivíduo como uma estrela única, e a necessidade de evolução pessoal através do conflito e da superação, não da vitimização. Em Liber AL vel Legis (II:58) aprendemos que os escravos servirão, indicando que aqueles que se prendem a mentalidades de rebanho ou que buscam validação externa ao invés da auto-realização estão fadados à servidão espiritual. Thelema exalta a força, a liberdade e a excelência individual, enquanto as teorias desenvolvidas ou englobadas perla cultura woke buscam nivelar a sociedade por meio da imposição de igualitarismos artificiais e da negação da Verdadeira Vontade em nome de uma moralidade coletiva. Veja Fernando Liguori. Magia sem Lágrimas ou Liguori Ensina Tudo: Thelema vs Cultura Woke. No prelo.
[4] Aleister Crowley. Liber 777, Coluna XV, 3. Waiser Books, 1977, pp. 116.
[5] Aleister Crowley. Commentaries on the Holy Books and Other Papers. Weiser, 1998, pp. 246.
[6] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, II:61.
[7] Aleister Crowley. Liber 777, Coluna XV, 3. Waiser Books, 1977, pp. 116.
[8] Frater V.V.V.V.V. (Vi Veri Vniversum Vivus Vici – pela força da Verdade, conquistei o Universo enquanto vivo) foi o nome mágico assumido por Aleister Crowley em 10 de dezembro de 1906, quando foi oficialmente convidado pelos Chefes Secretos a ingressar na Terceiro Ordem da Astrum Argentum (A∴A∴) como Magister Templi 8º=3, um grau que simboliza a travessia do Abismo e a aniquilação do Ego na esfera de Binah. Esse nome está diretamente ligado à sua missão espiritual e à sua função de guiar a humanidade através da Lei de Thelema. Nos Livros Sagrados de Thelema, mas especialmente em A Visão & a Voz e Liber Liberi vel Lapidis Lazuli, Crowley descreve suas experiências como Magister Templi e revela insights profundos sobre a dissolução do Eu e a submissão à Vontade Cósmica. Como V.V.V.V.V., ele simbolizava a realização do Sagrado Anjo Guardião, sendo um canal para a transmissão do novo Aeon de Hórus, estabelecendo o modelo do iniciado que alcança a Cidade das Pirâmides. Veja Fernando Liguori. Corrente 93: a Corrente Solar do Novo Aeon. Clube de Autores, 2017.
[9] Sobre isso veja Julius Evola. The Metaphysics of Sex. Inner Traditions, 1991.
[10] Aleister Crowley. Liber VII: Liberi vel Lapidis Lazuli, Cap. VII, 3. Os Livros Sagrados de Thelema. Madras. 1998, pp. 68.
[11] Veja o texto A Tentação do Neófito por uma Mulher Elemental. Fernando Liguori. O Olho de Hoor: o Entusiasmo Energizado de Aleister Crowley (Vol. I, No. 10). Clube de Autores, 2018.
[12] Eliphas Lévi, nascido Alphonse Louis Constant em 8 de fevereiro de 1810, em Paris, foi um dos maiores restauradores da tradição esotérica no Ocidente. Criado para o sacerdócio católico, abandonou os votos antes da ordenação, sentindo o chamado para um sacerdócio maior: o das Ciências Ocultas. Em meio ao fervor intelectual do Séc. XIX, Levi resgatou os mistérios da cabalá, do hermeticismo e da magia cerimonial, traduzindo-os para uma linguagem acessível aos buscadores modernos. Sua obra Dogma e Ritual da Alta Magia (1854-1856) tornou-se um farol para os aspirantes à Arte, influenciando profundamente a espiritualidade ocidental.
Lévi foi o elo entre a magia medieval e o Ocultismo moderno, unindo alquimia, cabalá e tarot em um sistema coerente e funcional. Ele reconstruiu a figura do mago como um arquiteto da Vontade e da Iluminação, longe das caricaturas supersticiosas do passado. Seu conceito do de Luz Astral, da polaridade entre Luz e Trevas, e da alquimia mental inspirou desde a Ordem Hermética da Aurora Dourada até os ensinamentos de Aleister Crowley e outras ordens esotéricas. Ele desvelou a antiga sabedoria, demonstrando que a magia não era uma superstição medieval, mas uma ciência da alma, capaz de transformar o homem em um templo vivo da Vontade Divina.
Sua morte, em 31 de maio de 1875, marcou o fim de uma era, mas seu legado permaneceu. Ele preparou o caminho para o renascer da magia no fim do Séc. XIX e início do Séc. XX, influenciando grandes pensadores ocultistas, como Papus, Crowley e Waite. Foi Levi quem primeiro desenhou a icônica imagem do Baphomet, que se tornaria um dos maiores símbolos do Ocultismo moderno. Seu nome ecoa como o grande restaurador da Alta Magia, provando que os mistérios nunca morreram, apenas aguardavam aqueles que ousassem decifrá-los.
[13] Samuel Liddell MacGregor Mathers, nascido em 8 de janeiro de 1854, foi um dos mais enigmáticos e brilhantes magistas do Séc. XIX. Visionário e erudito, ele foi o arquiteto da Ordem Hermética da Aurora Dourada, a ordem esotérica que revolucionou o Ocultismo ocidental e lançou as bases do renascer da magia no Séc. XX. Mestre em cabalá, alquimia, astrologia e magia cerimonial, Mathers dedicou sua vida à restauração dos mistérios perdidos da tradição hermética, o que configura tecnicamente hermeticismo. Seu trabalho de tradução dos manuscritos ocultos, incluindo a Kabblah Desvendada e o Livro da Magia Sagrada de Abramelin, o Mago, abriu caminhos antes trancados para aqueles que buscavam a Iluminação.
Mathers não foi apenas um estudioso, mas um verdadeiro mago da Vontade, capaz de encarnar os arquétipos dos antigos iniciados. Ele viajou ao coração do mistério, canalizando conhecimentos ancestrais e refinando um sistema mágico que se tornaria a espinha dorsal de ordens esotéricas futuras, incluindo a A∴A∴ de Aleister Crowley. Em Paris, onde estabeleceu sua base de operações, Mathers liderou sua ordem com a autoridade de um verdadeiro Adepto, reivindicando contato com os Chefes Secretos e conduzindo rituais que ecoavam as cerimônias ocultas do Egito e da Grécia. Com sua esposa, Moina Mathers, ele encenava grandiosas liturgias mágicas, fundindo arte, espiritualidade e ciência hermeticista
Mathers faleceu em 5 de novembro de 1918, encerrando um ciclo, mas deixando um legado que ressoaria por gerações. Sua vida foi um mistério, seu nome uma lenda, e seu sistema um mapa para aqueles que ousam trilhar o caminho da iniciação verdadeira. Sem ele, a magia teria permanecido fragmentada nas sombras da história; com ele, ergueu-se novamente como um farol para os buscadores da Luz Oculta.
[14] Eliphas Levi ensinou que a alma do homem é uma luz velada, um mistério composto por três partes essenciais: neshamah, o sopro divino da intuição e das aspirações superiores; ruach, a razão e o intelecto que busca compreender a criação; e nephesh, a força vital das paixões e instintos. Segundo sua visão da doutrina do tzelem, a alma é envolta por um véu ilusório, uma casca que reflete tanto a luz quanto a escuridão, pois a imagem do espírito pode ser dupla: de um lado, o Anjo Bom, o Sagrado Anjo Guardião que guia o iniciado; do outro, o Anjo Mal, a Persona Maligna que sussurra as tentações do caminho profano. Para Levi, essas forças eram representadas pelos arcanjos Miguel e Samael, e suas sombras se projetavam no ser humano por meio do nephesh e do ruach, os campos de batalha da alma.
O iniciado, ao trilhar a senda da Verdadeira Sabedoria, deve estar alerta para não sucumbir ao magnetismo fatal da Persona Maligna, que se assemelha ao conceito de Sombra da psicologia profunda. Levi advertia que o tzelem, a imagem interna do ser humano, é como uma esfinge enigmática, um mistério que deve ser desvelado. A Imagem Fatal da Natureza, refletida no nephesh, representa a submissão ao mundo externo, a ilusão de que a verdade se encontra fora de si, ao invés de dentro. Crowley mais tarde chamaria isso de recusa da iniciação, pois quem se deixa levar pelo reflexo distorcido da realidade se afasta do Caminho da Verdadeira Vontade. Contudo, Levi acreditava que o ruach, ao ser inspirado pela neshamah, poderia dissolver essa imagem nefasta e substituí-la pela visão do Anjo Bom.
Aqui, porém, reside um grande perigo: nenhuma das imagens pode ser seguida cegamente, pois são apenas sombras e cascas, projeções ilusórias do inconsciente. O ruach, a razão humana, não possui discernimento suficiente para distinguir entre a luz e a falsa luz, pois toda imagem carrega elementos da outra. Este é o dilema da alma: um jogo de espelhos onde o reflexo do Anjo pode esconder o demônio e onde a própria luz pode cegar. Por isso, no Liber XV, o Sagrado Anjo Guardião declara a si mesmo como a imagem de uma imagem, e é por isso que o Espelho Mágico está ligado a qoph, a Lua mutável, que oscila entre os véus da ilusão e da verdade. O nephesh é, de fato, imortal na dança eterna da criação e destruição das formas, mas se não for refinado pela chama da Verdadeira Vontade, ele se torna pedra, peso morto que arrasta o iniciado para as sombras. Assim, o adepto deve seguir o chamado da Consciência Superior e atravessar o véu das ilusões, dissolvendo a casca do reflexo e penetrando no fogo vivo da Verdade.
[15] Aleister Crowley. Liber LXV vel Cordis Cincti Serpente, Cap. I, 7. Os Livros Sagrados de Thelema. Madras. 1998, pp. 83.
[16] No início de Liber LXV (I:7-10) somos advertidos a não nos deixarmos aprisionar pelas imagens divinas enquanto buscamos o summum bonum, a realização suprema: Não vos contenteis com a imagem. Eu que sou a Imagem de uma Imagem digo isto. Não discutais a imagem, dizendo Além! Além! Sobe-se à Coroa pela lua e pelo Sol, e pela seta, e pelo Fundamento, e pelo escuro lar das estrelas partindo da terra negra. Não de outra forma podeis vós atingir a Ponta Polida.
Essa advertência nos revela um grande mistério: toda forma, todo símbolo e toda palavra são apenas véus, reflexos distorcidos da Verdade Última. A própria linguagem, por mais bela ou refinada que seja, não pode conter a essência do inefável. Assim, até mesmo os Livros Sagrados são portais, e não a meta final. Por isso, não devemos nos apegar a nenhuma imagem ou conceito – devemos seguir sempre adiante, ultrapassando todas as formas até alcançar a Coroa. Em Liber AHA temos: Sim, ao final, toda visão deve transcender a visão. Estas glórias são meros andaimes para o Palácio Fechado do Rei.
O ser humano, em sua jornada, é constantemente tentado pelo poder das imagens. A psique cria reflexos do Ser, o centro divino do ser, mas esses reflexos, ao serem traduzidos pelo Ego, tornam-se obscurecidos. Como num labirinto de espelhos, nos deparamos com projeções do sagrado e do profano, sem a capacidade real de distingui-los. O maior perigo está em confundir a imagem com aquilo que ela representa, reduzindo o Mistério à mera projeção mental e transformando a busca espiritual em dogma seco e infértil. É o que Jung advertiu: Todo arquétipo é capaz de desenvolvimento e diferenciação infinitos. Ele pode estar mais ou menos desenvolvido. Em uma religião onde toda ênfase recai sobre a forma externa (ou seja, onde há uma projeção quase completa), o arquétipo se confunde com ideias exteriorizadas e permanece inconsciente como um fator psíquico. Quando um conteúdo inconsciente é substituído por uma imagem projetada, ele se separa da mente consciente e deixa de influenciá-la [...]. Assim, pode acontecer que um homem que crê em todas as figuras sagradas ainda permaneça inalterado e sem desenvolvimento interior, pois tem 'todo Deus do lado de fora' e não o experimenta dentro da alma. Em Psicologia e Alquimia. Vozes, 1992, pp.11.
O sangue é a vida, o Espírito, para habitar o mundo, precisa ser vivificado. O Candidato, por sua vez, deve tornar-se um vaso vivo, receptivo à influência divina, mas nunca passivo. Esse não é um caminho de submissão ou possessão, mas sim de interação ativa com o Sagrado. O processo não se resume a visões ou êxtases passageiros; ao contrário, ele se manifesta no refinamento gradual da consciência, na disciplina, no estudo e na ação.
Cada gesto, cada pensamento, deve ser direcionado ao Mistério, de forma contínua e deliberada. O divino não pode ser apenas um ideal distante, mas sim um fogo aceso no coração, que ilumina cada aspecto da existência. É necessário incorporar essa chama na vida diária, torná-la o centro pulsante do Ser.
Essa não é uma tarefa fácil. A escuridão, a aridez espiritual, e aquilo que algumas tradições chamam de noite escura da alma são provações inevitáveis. Nas dificuldades do mundo material, nos desafios da sobrevivência cotidiana, muitas vezes o fio dourado da conexão sagrada parece perdido. Mas é exatamente nesses momentos que o verdadeiro Adepto se fortalece, pois sua jornada não é feita de certezas ou recompensas imediatas, mas de persistência inabalável.
O verdadeiro Candidato não se desvia da senda diante da frustração, mas segura firme a Verdade, continua seu estudo e busca orientação, confiando que aqueles que unem Palavra e Ação são abençoados. O Liber LXV nos dá essa promessa: o despertar não é instantâneo, mas àqueles que perseveram, ele certamente virá. Por isso, ao final (V:59), está escrito: E aqueles que leram o livro e debateram sobre ele passaram à terra desolada das Palavras Estéreis. E aqueles que selaram o livro no seu sangue foram os escolhidos de Adonai, e o Pensamento de Adonai era uma Palavra e um Ato; e eles habitaram na terra que os viajantes longínquos chamam Nada.
[17] A noite escura da alma na estrutura da A∴A∴, tecnicamente representa um estágio crítico na jornada iniciática do Adepto, a travessia do Abismo que separa o mundo da percepção ordinária da verdadeira compreensão espiritual, o mundo fenomenal e sua fonte noumenal, um vazio espiritual onde reside Choronzon, a personificação das ilusões e da confusão mental. A travessia deste Abismo exige a completa dissolução do Ego, permitindo que o iniciado alcance o Grau de Magister Templi (Mestre do Templo) e adentre a Cidade das Pirâmides, simbolizando a união com o divino. A Cidade das Pirâmides é a morada espiritual, portanto, daqueles que atravessaram o Abismo, renunciando ao Ego e à identidade individual para se tornarem Mestres do Templo (8°=3). Localizada simbolicamente em Binah, na Árvore da Vida, representa a dissolução na consciência cósmica e a absorção na corrente do Sagrado Anjo Guardião. Aqueles que atingem este grau tornam-se moradores silenciosos da Cidade das Pirâmides, existindo além da dualidade e do desejo, sustentando o progresso da humanidade por meio da Verdadeira Vontade.
O conceito de noite escura da alma é herdado do misticismo cristão e reinterpretado por Aleister Crowley; refere-se ao momento em que o Aspirante, ao alcançar um alto grau de progresso espiritual, experimenta uma profunda crise espiritual que leva a dissolução de todas as certezas que antes o sustentavam. Essa travessia simboliza a aniquilação total da identidade inferior e a submissão à Verdadeira Vontade, dissolvendo-se no Oceano da Consciência Cósmica, representado por Binah, a Grande Mãe do Pilar da Severidade. Muitos que chegam a este estágio falham, tornando-se Irmãos Negros, pois se recusam a abandonar completamente o controle do Ego e são absorvidos pelo espectro ilusório de Daath.
Neste contexto, a noite escura da alma não é apenas um período de dúvida ou desespero, mas um teste final e absoluto de emancipação espiritual. Crowley descreve essa fase em termos de crise iniciática, na qual o Adepto deve destruir suas ilusões, sua falsa identidade e todo apego ao que antes considerava sagrado. Somente aquele que se entrega completamente à corrente da Verdadeira Vontade pode emergir como um verdadeiro Magister Templi, tornando-se um receptáculo do Sagrado Anjo Guardião e canal da força da Verdade Suprema. Em A Visão e a Voz Crowley detalha essa travessia no 10° Aethyr, ZAX, onde a mente é destruída pela loucura do Abismo e apenas o silêncio pode levar à ascensão. O sucesso nesta provação significa renascer como um verdadeiro Mestre da Lei, alguém que já não busca mais sua própria vontade, mas se torna um veículo para o Logos do Novo Aeon. Assim, a noite escura não é o fim, mas o portal para a iluminação suprema, onde o iniciado deixa de existir como um Eu individual e passa a ser um reflexo da Consciência Cósmica como NEMO, i.e. nenhum homem, ninguém.
[18] Amṛta, na tradição tântrica, é a secreção sagrada que simboliza o néctar da imortalidade, um exsudado místico gerado nos cakras superiores através da manipulação das energias internas do praticante. Em muitas linhagens do tantrismo hindu e budista, o amṛta é descrito como uma substância etérica que desce do sahasrāra-cakra para os centros inferiores, podendo ser retido e refinado pela disciplina yogī para nutrir o corpo e a mente magneticamente. Essa essência é identificada com o soma vêdico e com o elixir da vida, e sua ativação está diretamente relacionada ao despertar da kuṇḍalinī e ao domínio da respiração e da meditação profunda. A secreção do amṛta ocorre quando as polaridades internas – Śiva e Śakti – se unem, criando um estado extático que transcende a dualidade e conduz à realização do estado divino.
No contexto da Ordo Templi Orientis (O.T.O.), particularmente no IX° Grau, o conceito de amṛta assume um papel central na magia sexual e na alquimia interna da transmutação da energia vital em poder espiritual. Crowley menciona em diversas instruções que o segredo do IX° refere-se à manipulação de um fluido essencial que, quando devidamente consagrado e direcionado, torna-se o veículo da manifestação da Verdadeira Vontade. Esse elixir, identificado com o Licor Sagrado da Missa Gnóstica e com as secreções sexuais transmutadas, é tratado como uma chave para a consecução da Grande Obra. Assim como no tantra, onde a produção do amṛta através de técnicas esotéricas garantem a longevidade e o êxtase espiritual, na O.T.O. esse princípio é explorado através da magia sexual, na qual o licor produzido no rito é entendido como uma substância carregada de poder teúrgico.
Dessa forma, o amṛta, seja no tantra ou na tradição thelêmica, não é apenas um conceito abstrato, mas um veículo real de iluminação e realização mágica. Através de práticas avançadas de yoga, magia sexual e ritualística, o iniciado aprende a controlar e consagrar essa substância, tornando-a uma chave de poder capaz de conectar os planos superiores e inferiores da existência. Essa integração do conceito de amṛta no IX° O.T.O. demonstra como a sabedoria tântrica foi assimilada e reinterpretada dentro do paradigma thelêmico. Veja Hugh B Urban. Magia Sexualis: Sex, Magic, and Liberation in Modern Western Esotericism. University of California Press, 2006. Veja também Gordan Djurdjevic. India and the Occult: the Influence of South Asian Spirituality on Modern Western Occultism. Palgrave, 2014. E Wouter J. Hanegraaff. Hidden Intercourse: Eros and Sexuality in History of Western Esotericism. Fordham, 2011.
[19] Aleister Crowley. Liber LXV vel Cordis Cincti Serpente, Cap. II, 1-2. Os Livros Sagrados de Thelema. Madras. 1998, pp. 87.
[20] O Livro do Que Está no Duat ou Amduat é um dos textos funerários reais mais importantes do Novo Império (c. 1550-1070 a.E.C.). Ele descreve a jornada de Rá pelo submundo (Duat) durante as 12 horas da noite. Foca na regeneração solar e no renascimento do faraó com Rá e aparece principalmente em túmulos reais, como os dos faraós no Vale dos Reis.
[21] Aleister Crowley. Liber LXXVII vel Oz.
[22] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, I:22.
[23] Aleister Crowley. A Visão & a Voz. 17° Aethyr. Em The Equinox: Livros Selecionados. Tomo I. Daemon Editora, 2020, pp. 258.
[24] Aleister Crowley. Liber 777, nota a Col. XV, 3. Waiser Books, 1977, pp. 127.
[25] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, I:37. Veja próxima seção.
[26] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, I:42.
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